Com uma canetada o presidente Jair Bolsonaro decretou o esvaziamento das funções da Fundação Nacional do Índio (Funai), e colocou na berlinda a demarcação de novas terras indígenas e a conservação do meio ambiente. O capitão assinou uma medida provisória que delega ao Ministério da Agricultura, chefiado por Tereza Cristina da Costa (DEM), até então líder da bancada do agronegócio na Câmara, a tarefa de identificar e demarcar terras indígenas no país. Esta era uma das principais atribuições da Funai nas últimas décadas. A alteração, publicada no Diário Oficial na noite de terça-feira horas após a cerimônia de posse de Bolsonaro, é um antigo desejo do agronegócio e da bancada ruralista do Congresso.
A medida é a concretização de uma série de declarações feitas por Bolsonaro ao longo da campanha. O capitão já havia se comprometido a barrar a demarcação de novas terras. Segundo dados da Funai, atualmente existem 128 processos de demarcação em andamento envolvendo terras que abrigam mais de 120.000 indígenas de diversas etnias. Até então, cabia à entidade receber as demandas das etnias e realizar os estudos antropológicos e geográficos que fundamentam a identificação e a delimitação do território tradicional. “Temos uma área mais que a região Sudeste demarcada como terra indígena. E qual a segurança para o campo? Um fazendeiro não pode acordar hoje e, de repente, tomar conhecimento, via portaria, que ele vai perder sua fazenda para uma nova terra indígena”, afirmou o presidente eleito em dezembro.
A ex-candidata a vice na chapa do PSOL, a liderança indígena Sonia Guajajara usou o twitter para criticar a medida. “O desmanche já começou. A Funai não é mais responsável pela identificação, delimitação, demarcação e registro de Terras Indígenas. Saiu hoje no Diário oficial da União. Alguém ainda tem dúvidas das promessas de exclusão da campanha??”, escreveu.
Além de cessar os processos de demarcação já em andamento, Bolsonaro ameaçou também rever algumas terras indígenas já demarcadas, como a Raposa Serra do Sol, em Roraima, que abriga cerca de 20.000 indígenas. A área foi homologada em 2005, e em 2009 o Supremo Tribunal Federal confirmou a decisão do então presidente Lula. No entanto a região conta com terras férteis e abriga reservas minerais estratégicas, como de nióbio e urânio, o que desperta o interesse do agronegócio e de mineradoras. “É a área mais rica do mundo. Você tem como explorar de forma racional, e no lado dos índios dando royalties e integrando o índio à sociedade”, disse Bolsonaro.
Para juristas, no entanto, a revisão proposta por Bolsonaro seria inconstitucional. “A decisão transitou em julgado. Foi uma decisão histórica. Para os índios, é direito adquirido. Depois que o Estado paga uma dívida histórica, civilizatória, ele não pode mais estornar o pagamento e voltar a ser devedor”, disse o ex-ministro do STF Ayres Britto ao jornal O Globo.
Mas não são apenas os povos tradicionais que veem seus direitos ameaçados. Desde o início da campanha o discurso do capitão foi marcado por uma forte retórica de desregulamentação de áreas protegidas, criação de freios para agentes fiscalizadores e desburocratização da concessão de licenças ambientais. Estes acenos aos ruralistas já haviam começado a tomar forma com a indicação de ministros ligados ao agronegócio.
Os gestos de aproximação com deputados e senadores ligados ao negócio da soja e à agropecuária – justamente os dois maiores responsáveis pelo desmatamento no Brasil, em conjunto com as madeireiras – fica evidente na escolha do primeiro escalão do futuro Governo. A ministra da agricultura, Tereza Cristina da Costa (DEM), por exemplo ganhou o apelido de “musa do veneno” por ter comandado uma comissão parlamentar que aprovou regras que flexibilizam o registro e a utilização de agrotóxicos no país (a matéria ainda será votada no plenário). Segundo o relatório aprovado por ela, o uso de pesticidas deve ser liberado pelo Ministério da Agricultura mesmo que órgãos e agentes reguladores como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por exemplo, não tenham dado seu parecer quanto à segurança dos químicos.
Outro ministério-chave para a preservação dos recursos naturais, o do Meio Ambiente, ficará sob a batuta de Ricardo de Aquino Salles, condenado em dezembro por improbidade administrativa. Segundo o Ministério Público, quando estava à frente da Secretaria do Meio Ambiente do Governo de Geraldo Alckmin(PSDB), em São Paulo, entre 2016 e 2017, ele teria alterado o plano de gestão de uma área de proteção ambiental de modo a favorecer empresas privadas. Salles nega qualquer irregularidade, e afirmou e nota que “não houve vantagem pessoal, nem dano ambiental e desenvolvimento econômico”. Ainda cabe recurso da sentença.
Um dos principais órgãos de fiscalização ambiental, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), subordinado à pasta que será comandada por Salles, também não deve ter vida fácil no novo Governo. No início de dezembro Bolsonaro criticou uma suposta “indústria da multagem (sic)” por parte do Instituto. “Sou defensor do meio ambiente, mas dessa forma xiita, como acontece, não. Não vou admitir mais Ibama sair multando a torto e a direito por aí, bem como ICMBio [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade]”, afirmou. “Essa festa vai acabar”, concluiu o presidente eleito. Em tempo, ele afirmou ter sido ele mesmo alvo de uma multa no valor de 10.000 reais por algo que ocorreu “numa hora e dia onde eu tinha botado o dedo no painel de votação em Brasília”.
O presidente eleito também faz reiteradas críticas a uma suposta burocracia ligada à concessão de licenças ambientais. “Quando se fala em licença ambiental, e [a pessoa] é obrigado a derrubar uma árvore que está ameaçando cair: é uma dificuldade para conseguir essa licença. E toma multa caso derrube essa árvore sem a devida autorização para tal”. Na visão do capitão isso “atrapalha quando um prefeito, governador, presidente, quer fazer uma obra de infraestrutura, uma estrada, por exemplo”. Por fim, Bolsonaro apontou onde esse “problema” costuma se manifestar: “Isso acontece muito na região amazônica”.
Ameaça ao comércio com União Europeia
A postura de Bolsonaro com relação às questões ambientais provocou reações mais duras por parte de líderes da comunidade internacional. Em setembro, ainda durante a campanha, ele anunciou que caso eleito iria retirar o país do Acordo de Paris, que inclui uma série de medidas para minimizar os impactos do aquecimento global. O Acordo foi firmado em 2015, e tem o Brasil como signatário. Em outubro ele voltou atrás, mas não bastou para acalmar o presidente francês Emmanuel Macron, que afirmou que “a França não apoiará acordo com quem não respeita o Acordo de Paris”, sinalizando que as já letárgicas negociações entre a União Europeia e o Mercosul podem desandar caso o capitão não se comprometa com o texto assinado. Por sua vez, Bolsonaro disse que “sujeitar automaticamente nosso território, leis e soberania a colocações de outras nações é algo que está fora de cogitação”.
”O presidente francês e a chanceler alemã já entraram em atrito com Bolsonaro após ele dizer que o Brasil iria se retirar do Acordo de Paris”
A chanceler alemã Angela Merkel fez coro às declarações de Macron: “O tempo está se esgotando para um o acordo entre União Europeia e Mercosul. Deveria acontecer bem rápido, caso contrário, com o novo governo do Brasil, seguramente, não vai ser fácil”. A poeira da polêmica envolvendo os líderes europeus e o capitão ainda não havia assentado quando ele afirmou que o Brasil não sediará a conferência climática da Organização das Nações Unidas em 2019, a COP 25. Em sua conta no twitter o presidente eleito afirmou que a decisão teve como base o corte de custos: “Abrimos mão de sediar a Conferência Climática Mundial da ONU pois custaria mais de 500 milhões de reais ao Brasil e seria realizada em breve, o que poderia constranger o futuro Governo a adotar posições que requerem um tempo maior de análise e estudo”.
A ameaça de retirar o Brasil do Acordo de Paris rendeu a Bolsonaro o Prêmio Fóssil do Dia, concedido por uma rede de ONGs que acompanham as negociações da conferência climática. A honraria irônica é oferecida para nações que se esforçam para travar ações em prol do meio ambiente. Por fim, diversas entidades conservacionistas com sede nos Estados Unidos, dentre elas a Amazon Watch, divulgaram uma carta aberta criticando as políticas de Bolsonaro para o meio ambiente. “Se implementadas, podem infligir danos de amplo alcance e duradouros a comunidades brasileiras e ao meio ambiente.”
“Não tem mais demarcação de terra indígena”
Soma-se às declarações de Bolsonaro sobre terras indígenas a indicação da pastora evangélica Damares Alves para comandar a pasta das Mulheres, da Família e dos Direitos Humanos, agora com novo redesenho ministerial. Com isso a Funai, – agora sem o poder de demarcar terras —, que antes ficava sob controle do Ministério da Justiça, ficará subordinado a Alves.
O ex-presidente da Funai no governo Temer, Antônio Costa afirmou ao repórter Ricardo Della Colleta em dezembro que a transferência do órgão federal para o novo ministério deve criar um grande vazio de direitos adquiridos pelos indígenas e inflamar ainda mais os conflitos no campo. Costa se demitiu por conta de pressões da bancada ruralista do Congresso quatro meses após assumir o cargo. “Os deputados ruralistas com quem conversei são sensíveis à sustentabilidade dos povos. O que falta é diálogo com os segmentos e parar de colocar os índios e as demarcações como entraves para o desenvolvimento”, afirmou.